Todos participavam da a Etos.IA, uma cúpula para discutir ética na IA em Goiânia (GO), no fim de novembro. Espantando a quase que onipresente euforia com a IA Generativa, Cerf estava lá para apresentar sua visão para lá de pragmática sobre a tecnologia do momento, equidistante tanto das ideias de catástrofe plena (ela irá substituir toda e qualquer ocupação humana) e quanto das de reverência cega (ela nos dará tempo para nos dedicarmos às artes). E, sobretudo, falou para quem, de fato, interessa: os humanos por trás das máquinas.
Nós, que fazemos software, pedimos às pessoas que confiem que o programa funcionará como o anunciado. E, quando não funciona, há consequências ruins. Portanto, todos os programadores, estejam trabalhando com IA para áudio, imagens ou texto –ou apenas escrevendo programas comuns– temos a responsabilidade significativa de fazer esse software funcionar da melhor maneira possível. Precisamos nos preparar para a possibilidade de o software não funcionar como queremos, pensando em tudo o que pode dar errado e em maneiras de evitar que coisas ruins aconteçam –ou pelo menos minimizar as consequências
Vint Cerf

Para ficarmos na mesma página, Cerf não é chamado de “pai da internet” à toa. No começo dos anos 1970, quando as redes de computador eram experimentos financiados pelo Exército norte-americano e restritas aos laboratórios de universidades ou às operações militares, ele e Bob Kahn desenvolveram um protocolo para facilitar a troca de informação entre essas várias redes. Era o que ficou conhecido como TCP/IP.
Se hoje em dia a internet é conhecida como “A rede mundial dos computadores”, “A rede das redes” ou “A autoestrada da informação” e possui tantos nomes quanto a Daenerys, de Game of Thrones, a culpa é desse cara aí. Por isso e por literalmente ter escrito muitos dos documentos técnicos que colocaram a internet de pé:
- Cerf foi nomeado há 20 anos vice-presidente do Google para ocupar um cargo curioso, que ele fez questão de desmistificar de saída: “É evangelista-chefe da internet, o que sugere que eu deveria deixar os ternos e usar algum tipo de manto eclesiástico”. No entanto, ele vestiu rápido o traje profético e, antes mesmo do iPhone surgir, previu coisas como…
A internet tem 1 bilhão de usuários, ainda faltam outros 5,6 bilhões (…) E cada um deles virá para internet de forma diferente, talvez sem usar cabos, e o Google precisa ser receptivo e adaptado para essa circunstância
Vint Cerf, em 2005
- … Mas, como cada época possui sua prioridade, e a do momento é a IA, foi sobre esse tópico que Cerf se debruçou em Goiás. A grande revolução, diz, é a dos agentes de IA. Um passo além do ChatGPT, são robôs construídos para ser autônomos o suficiente para executar ações em nosso nome. Só que…
- … Cerf já viu muitas transformações, o suficiente para não ser reverente nem mesmo com a bola da vez na era da IA:
O assunto do momento são os agentes de IA. E enfrentamos um fator de risco por oferecermos a eles muita autoridade sem qualquer [supervisão]. Podemos acabar tendo o que merecemos, pois eles lembram uma brincadeira de criança, chamada ‘telefone sem fio’. Você sussurra uma mensagem no ouvido de alguém, que sussurra o que ouviu para a próxima; se passarmos por umas dez pessoas, a mensagem final não tem nenhuma semelhança com a original. Eu me preocupo. Haverá agentes de IA conversando entre si, e o último, o que deveria executar a ação, fará algo que não foi solicitado originalmente.
Vint Cerf
- … Já lidar com as falhas dos agentes de IA não é algo tão frívolo quanto brincadeiras de criança. Nessas horas, diz Cerf, a prioridade absoluta é fazer algo distante do que vemos hoje, já que…
- … Ele diz que a missão dos desenvolvedores é, em primeiro lugar, evitar os erros (“temos que ser muito criteriosos sobre o que pode dar errado”), mas, se isso não for o suficiente, é preciso “ter meios para responsabilizar as partes envolvidas”. Com tantos serviços e produtos colocados no ar sem seus efeitos sobre as pessoas serem minimamente calibrados, dizer o óbvio parece utópico, seu Cerf.

Para Cerf, a IA é tão importante quanto os smartphones foram para a democratização da internet ou os equipamentos de “internet das coisas” foram para libertar a rede das amarras dos computadores e celulares e fazer da conectividade um item de fábrica para qualquer dispositivo eletrônico.
Aliás, a IA está longe de ser a última parada da internet. Na verdade, ela é só um dos sete estágios evolutivos da “autoestrada da informação”, explica Cerf em artigo de outubro deste ano e escrito com Mallik Tatipamula, CTO da Ericsson:
- Internet: criada para interconectar redes de computadores e ligar sistemas isolados em uma “rede das redes”;
- Internet móvel: fez a conexão se tornar portátil, o que remodelou da comunicação ao entretenimento;
- Internet das coisas: ao ligar todo e qualquer aparelho para além de PCs e celulares, fez da rede o “sistema nervoso invisível” que une os mundos físico e digital;
- Internet dos agentes de IA: em vez de só transmitir dados como o IoT, os agentes de IA percebem, refletem, agem e colaboram; podem ser digitais (que vivem apenas no mundo digital, como os chatbots) ou físicos (que operam em ambientes físicos, como robôs, drones ou veículos autônomos);
- Internet das sensações: prevista como próximo passo da internet, é a possibilidade de transmitir percepções, o que envolve comunicações multisensoriais (não só texto, áudio ou imagem, mas toque, gosto ou cheiro), e superfícies e materiais programados para perceber o mundo à sua volta e reagir a ele (uma rua que detecta o volume de veículos e decide acelerar o tempo de espera do semáforo);
- Internet ubíqua: mais voltada à integração das redes de telecomunicação, essa fase apagaria as fronteiras técnicas entre rede de celular, Wi-Fi e internet satelital, por exemplo;
- Internet quântica: nessa etapa, a transmissão binária de informação dá lugar ao fluxo quântico de informação e faz o funcionamento da internet algo mais próximo de um ser vivo.

Obviamente, estamos longe de qualquer cenário em que é comum sentir o cheiro de pão quentinho assim que uma foto de padaria aparecer no feed do Instagram. Até porque mal entramos na era da “internet dos agentes de IA”. Para Cerf, a missão de tornar a tecnologia segura, confiável e confortável para o uso é dos desenvolvedores —logo: não são os usuários que precisam se adaptar a toda uma nova e assustadora parafernália tecnológica.
Hoje, quando entro em um elevador moderno, tenho que apertar botões e muitas vezes dizer para qual andar quero ir. O elevador abre, eu entro, a porta fecha e, neste ponto, não tenho mais controle. Dependo do software de outra pessoa, e isso sempre me deixa nervoso. Esse é um pequeno exemplo, claro, do tipo de coisa que vocês experimentarão à medida que começarmos a usar cada vez mais a inteligência artificial.
Vint Cerf
Ainda assim, as pessoas possuem um papel importante, diz o “pai da internet”. “A responsabilidade dos usuários é usar a capacidade crítica para decidir se confiam em um resultado ou não. Devemos sempre nos perguntar: qual é a base da resposta dessa ferramenta? Ela aponta referências verificáveis? Pode explicar o raciocínio da conclusão? Temos que fazer essas perguntas ou seremos tão responsáveis quanto o programador em caso de erros.”
Não é fácil, admite o matemático, já que muitas IAs são construídas para agir como seres humanos (“As interações fazem você pensar que há uma pessoa do outro lado. Os chatbots até usam a palavra ‘eu’. E a IA diz isso porque ela foi treinada para imitar uma pessoa”), mas é bom lembrar que os seres humanos são os especialistas em assuntos humanos, não a IA (“Instintivamente, projetamos na IA o tipo de compreensão que uma pessoa teria, mas uma IA não tem isso. Ela tem uma compreensão profunda das expressões e do conhecimento humano, mas compreende só superficialmente os assuntos humanos”).
Se os 82 anos de Vint Cerf podem fazer você pensar que se trata de um velhinho que ficou parado no tempo, melhor repensar: inteligência artificial é um conceito de 1956, mais antigo do que a trajetória dele no mundo da tecnologia. Ou seja, foi a IA que viu Cerf crescer —não o contrário. “Ironicamente, construímos aquela rede para conectar uma dúzia de universidades que estudavam inteligência artificial no final da década de 1960”, brinca Cerf.
No entanto, foi ele que criou a rede que deu asas para a IA invadir as nossas vidas.
DEU TILT
Toda semana, Diogo Cortiz e Helton Simões Gomes conversam sobre as tecnologias que movimentam os humanos por trás das máquinas. O programa é publicado às terças-feiras no YouTube do UOL e nas plataformas de áudio. Assista ao episódio da semana completo.

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